quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A nós o que é de César


No calor (fervente)  do momento, acabei me esquecendo de algumas questões importantes sobre as relações entre a Conjuração de Catilina e a situação política atual. E é o seguinte:

Cícero coloca a prudentia, essa espécie de sabedoria prática clarividente, como uma das três qualidades do senador ideal. Não sem motivo, seus discursos estão repletos de menções a precedentes e situações da história romana análogas àquelas de que trata, e isso não apenas no Senado, por sinal, mas também nos discursos judiciais e nas assembleias populares.

Pois bem. Também no debate senatorial da Conjuração de Catilina, centrado nas figuras de Júlio César e Catão, os dois protagonistas valem-se dessa mesma estratégia de manuseio dos precedentes históricos, que, com toda a probabilidade, era quase onipresente em discursos do gênero, tamanha a autoridade e o peso que se conferia à tradição ancestral em Roma.

Ora, no discurso de César, que advoga moderação e questiona a pena de morte para os conspiradores, há um uso dos precedentes que poderia muito bem servir de aviso --- e precedente --- para nós, modernos, assim como valia para o leitor contemporâneo de Salústio. César refere-se à época das proscrições de Sula, o ditador do final da década de 80 a.C., que saíra vencedor da Guerra Civil e promovera uma verdadeira faxina de seus inimigos. Estes, que foram talvez milhares, tinham seus nomes publicados em listas públicas de proscritos. Tinham seus bens confiscados e podiam ser assassinados legalmente, como efetivamente o foram. César cita, mais especificamente, o caso de Damasipo, um dos inimigos de Sula assassinado por este, antes mesmo das proscrições. O argumento de César é que muitos comemoraram essa licença desenfreada para matar opositores --- até serem eles mesmos mortos por ela. As palavras que emprega podem nos servir de aviso ou lamento, a depender de quando lhe dermos atenção:

“Assim, aqueles a quem a morte de Damasipo fora fonte de alegria eram, pouco tempo depois, eles mesmos arrastados, e a degola só teve fim depois que Sula cobriu todos os seus de riquezas.” (51.34)

Pouco antes, analisando um precedente grego, César dissera:

“Assim, a cidade, esmagada pela escravidão, sofreu graves castigos por sua estúpida alegria.” (51.31)


Quem viver, rirá.